sábado, 19 de maio de 2012

Trabalho Escravo no Sul do Brasil.


Filhos “herdam” pobreza e escravidão dos pais

Por Maurício Hashizume
O trabalho escravo é a “herança” que pais de famílias pobres e vulneráveis estão deixando para os seus filhos em pleno “Sul maravilha”. A Repórter Brasil esteve na região de divisa do Paraná com Santa Catarina e ouviu um pai e um filho que foram libertados juntos de uma área de colheita de erva-mate. Eles foram encontrados em alojamentos precários (barracas de lona improvisadas no meio da mata, sem estrutura básica para acomodação, higiene e alimentação decentes), não dispunham de registro em carteira, tinham contraído dívidas prévias com o empregador (que posteriormente seriam descontadas no pagamento) e cumpriam longas e extenuantes jornadas de trabalho. Tudo isso sob o agravante das gélidas temperaturas e dos ventos cortantes que sopram na região.
Surpreende no depoimento das vítimas, colhido no ano passado, a forma como a exploração desumana está “naturalizada” nas vítimas. Perguntado sobre o que sentiu quando se deparou pela primeira vez com quadro semelhante de violação dos seus direitos básicos como trabalhador e ser humano, o filho “Carlos” (nome fictício para preservar a identidade do entrevistado) não titubeou:
“Não senti nada, né? Temos que trabalhar. Não tem nada que sentir. Vai fazer o quê? Não tem outra situação”.
As declarações do pai (aqui chamado apenas de “José”, também para que não seja prejudicado) corroboram a mesma sensação de miséria inexorável e permanente. Eles compõem a parcela que está nos “porões” da sociedade e lutam por itens básicos para continuar existindo. Vivem encurralados de empreitada a empreitada, de uma situação subumana a outra, como se estivessem em um beco sem saída.
“O pessoal passa necessidade porque não tem meios de ir ao mercado [para comprar produtos de necessidade básica para a família]. Aí tem que ´se bater´. O que acontece? Temos que pegar o que aparecer para poder sobreviver”.
A pobreza no Sul pode não ser tão aparente como em outras regiões do país, mas está lá. De acordo com o Censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma de cada 10 famílias do município de Doutor Ulysses (PR), por exemplo, se encaixa na faixa do que o governo federal considera como de miséria. Nesses lares, a renda familiar não ultrapassa R$ 70 per capita. Em todo o país, são 16,2 milhões de brasileiros (8,5% da população) nessa condição. Entre maio a junho de 2009, auditores fiscais e procuradores do trabalho libertaram 29 pessoas na referida localidade de Doutor Ulysses (PR) que estavam sendo mantidas em condições de trabalho escravo em propriedades de reflorestamento e extração de madeira.
O desamparo inerente às circunstâncias vividas pelos trabalhadores se reflete no medo com que escolhem as palavras, ditas sempre com a parcimônia de quem teme ser demasiadamente sincero. “A gente não têm os direitos”, resume José. “Tem gente que pergunta: ´você está trabalhando sem registrar [a carteira de trabalho]?´ Mas o que a gente vai fazer? Eu criei cinco filhos, mas toda vida trabalhando pesado, sem ter folga, suando, passando necessidade no mato, deixando a família longe por 15 dias, muitas vezes sem condição nenhuma. É por aí”.
É uma questão de luta diária para garantir o básico, confirma a auditora fiscal do trabalho Luize Surkamp, coordenadora de diversas libertações de trabalho escravo no Sul. “E vem de pai pra filho”.
Contextualização
Houve quem acreditasse que trabalho escravo era um fenômeno geográfico: um traço típico dos recantos isolados de um país continental “em desenvolvimento”, uma das características do que muitos preferem chamar de “Brasil profundo”. Práticas como a servidão por dívida, as restrições de ir e vir, a falta de pagamento regular, o trabalho degradante e as jornadas exaustivas foram desde sempre associadas à fronteira agropecuária – em especial nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, envolvendo invariavelmente vítimas de origem nordestina.
Essa construção mítica, porém, não vem resistindo à realidade. Bastou que as fiscalizações trabalhistas fossem intensificadas nos últimos cinco anos para que a Região Sul, até então tida como “livre” de diversos dos males que representam o atraso, passasse a despontar como pródiga em flagrantes de escravidão contemporânea.
Até 2005, nenhum caso oficial de trabalho escravo contemporâneo havia sido registrado pelas autoridades trabalhistas nos três Estados que integram a Região Sul. Um cenário praticamente desconhecido começou a ser desvendado a partir de duas inspeções que se iniciaram em maio daquele ano: uma no Rio Grande do Sul e outra no Paraná.
Em São Francisco de Paula (RS), 35 pessoas eram mantidas em condições de trabalho escravo contemporâneo na colheita de alho, feijão e batata. O proprietário da área, Luiz Carlos Berti, permaneceu na “lista suja” do trabalho escravo do final de 2006 até meados de 2009. Já em Tunas do Paraná (PR), empresa exportadora Itamarati Indústria de Compensados, com sede em Palmas (PR), subcontratou um pequeno empreiteiro para intermediar o recrutamento de 82 trabalhadores, que foram alojados em barracos de pau-a-pique e lona preta, em chão batido, sem água potável. Tudo que se viu nos anos seguintes derrubou a genérica suposição de que o problema da escravidão se restringia apenas aos chamados “rincões”.
De maio de 2005 até o final de 2011, conforme balanço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), foram contabilizadas mais de 1,5 mil pessoas em 95 casos registrados de flagrantes de trabalho escravo no Sul do país. A maioria absoluta (cerca de 90%) das libertações está relacionada à extração de madeira (especialmente pinus, em áreas de reflorestamento) e na coleta de erva-mate. Há também casos de escravidão – inclusive envolvendo trabalho infantil – em colheitas de batata, cebola, maçã, alho, feijão, tomate, fumo etc. Também há registros em segmentos “tradicionalmente” vinculados ao problema – como a pecuária, o cultivo consorciado de soja e milho – e em obras da construção civil.
Além da variedade de atividades, a concentração territorial dos casos de trabalho escravo também é espantosa. Aproximadamente três em cada quatro libertações ocorreu dentro do perímetro de um retângulo imaginário de 220 km de largura e 70 km de altura, com Curitiba (PR) situada na extremidade direita superior. Esse retângulo abarca grande parte da divisa do Paraná com Santa Catarina, especialmente nas áreas de influência no entorno do Rio Iguaçu, cujo curso determina a separação entre os dois Estados.
Entre os 291 empregadores que constam da atual “lista suja” do trabalho escravo (conforme a última atualização realizada em 13 de abril de 2012), 40 são da Região Sul do país (16 de Santa Catarina, 19 do Paraná e cinco do Rio Grande do Sul). Os envolvidos em casos de trabalho escravo são incluídos no cadastro mantido pela Portaria Interministerial nº 2 – do MTE e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) -, de 12 de maio de 2011, após a conclusão do processo administrativo iniciado a partir dos flagrantes da fiscalização trabalhista.
A presença da fiscalização trabalhista nos campos sulinos, aliás, rendeu reações frontalmente contrárias de produtores e autoridades locais em casos como o de Ituporanga (SC), em função das averiguações na colheita da cebola, e em Ibiraiaras (RS), pólo produtor de batata. A atuação de comitivas de inspeção das condições de trabalho neste último município desencadeou inclusive a mobilização da bancada ruralista no Congresso Nacional em audiência pública realizada no final de setembro de 2011 na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) da Câmara dos Deputados, convocada pelo deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM-RS).
Continuação:
2. Trabalhadores encaram restrições e precariedades
3. Escravidão sulina apresenta traços peculiares
4. Autoridades tentam ações conjuntas com patrões
5. Caminhos se fecham sem investimentos sociais

Deixe uma resposta

*

*

Nenhum comentário:

Postar um comentário