13/03/2013 - 10:57
Em Pernambuco, assentamentos no Vale do São Francisco mudam radicalmente a vida de centenas de sertanejos através da produção irrigada de frutas
Petrolina (PE), Santa Maria da Boa Vista (PE) – Faz 40 anos que a chuva não faltou assim em Pernambuco. A seca de 2012, que levou 122 municípios a decretar estado de emergência, matou de fome cerca de 200 mil animais (outros 300 mil foram abatidos antes que a falta de chuva os matasse). Entre os mais de 1 milhão de sertanejos vitimados pela estiagem, os que vivem da roça perderam 100% das lavouras de milho e feijão; e 80% dos açudes e barragens do sertão viraram pó. É o que contabiliza o governo do Estado.
Localizada às margens do rio São Francisco, a região de Petrolina, segunda maior cidade do Estado, também é sufocante nesta época do ano. Quem deixa o município pela BR-122 rumo a Lagoa Grande mergulha em uma paisagem cinza de Caatinga ressequida. O ar tremula oleoso de quentura, e à passagem do carro, urubus preguiçosos apenas saltitam de esguelha ou levantam um vôo curto para rapidamente voltar à carcaça da vaca morta na beira da estrada. Vez por outra, cabritos mais desatentos, que vagam feito retirantes pelos acostamentos, botam susto no motorista.
Percorridos pouco mais de 140 quilômetros pela BR, pode-se quebrar à direita numa brecha de cerca sem sinalização, e seguir por uma estradinha de terra que desemboca em uma pequena agrovila. Chegou-se ao assentamento São José do Vale. Algumas curvas além, um verde desatado engole a Caatinga. Aqui, parreirais, campos de melancia, goiabeiras, mangueiras e pinha, que se revezam nos pequenos lotes, contam a história de um outro sertão.
São José do Vale é um dos 32 assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) do lado pernambucano do Vale do São Francisco, no trecho entre Petrolina e Santa Maria da Boa Vista. Os cerca de 120 hectares do atual assentamento pertenciam à Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco), que os havia arrendado ao falido projeto Sanrisil para produção de goiaba e plantas medicinais. Em 1996, a área foi ocupada pelo MST, e um ano e dois despejos depois, no final de 1997 sua posse foi emitida para os sem terra. Com 36 famílias, São José está entre os 10 assentamentos do MST na região que se beneficiam de uma estrutura operante de irrigação.
Do quase nada ao muito melhor
Nativo de Bodocó, Pernambuco, Francisco Regivaldo dos Santos deixou a terra seca dos pais em 1992 e se empregou como trabalhador em um projeto de produção de goiaba nas cercanias de Petrolina. O trabalho e o patrão não eram ruins, mas as histórias de uns e outros que conseguiram terra próprio na região mexeram com ele. Em 2000, resolveu raspar o tacho das economias e tentar a sorte em um dos lotes que vagou no assentamento de São José do Vale.
Confortavelmente instalado à sombra de uma árvore no espaçoso quintal de sua casa, Francisco sorri quando lembra o passado. “Quando cheguei aqui não havia produção na terra. Tive que desmatar a caatinga por conta própria, e no começo passamos fome mesmo. Eu acordava todo dia às 4 horas da madrugada, saía sem comer, porque não tinha, e quando chegava em casa era só um cuscuz com café. Construímos nosso primeiro barraco debaixo da mangueira”.
Assim na aparência, pouco na vida de Francisco hoje lembra aquele começo difícil. Há quatro anos, a família terminou a construção da casa (grande até para padrões da cidade) na beira do rio. Ao lado, montou uma estrutura para receber amigos e visitantes nos finais de semana, com cozinha, churrasqueira e bar; e na garagem guarda sua caminhonete prateada.
Da varanda da casa, separado apenas por uma ruazinha de terra, pode-se avistar o plantio de pinha e atemóia de Francisco, que ocupa 1,6 hectares. Ao lado, segue o meio hectare de manga, e pouco adiante se estendem os dois hectares de uva de mesa da família – tudo irrigado. Pelos seus cálculos, o assentado tira hoje cerca de R$ 3 mil por mês com a produção de frutas, mas já teve vez que a renda mensal chegou a R$ 10 mil. “Um ano em que tudo teve preço”, lembra. “Só posso dizer que nos últimos 12 anos a minha vida melhorou muito”, assegura rindo, só para reafirmar.
Se a qualidade de vida melhorou, a demanda de trabalho continua a mesma. Ou melhor, aumentou. Tanto a pinha quanto a atemóia são culturas rentáveis, mas que precisam ser polinizadas manualmente, explica Francisco. Isso significa introduzir manualmente o pólen nas flores de cada planta para garantir a frutificação. Já o manejo da uva – carro-chefe dos assentados de São Jose, e que rende duas colheitas anuais –, exige uma dedicação que pode inviabilizar áreas maiores.
Grosso modo, o custo inicial para a estruturação de um hectare de uva de mesa irrigada em São José do Vale é de cerca de R$ 50 mil, contando-se a aquisição dos mourões, dos arames e da estrutura de irrigação por gotejamento (bomba de água, dutos e mangueiras).
Comprar itens usados pode diminuir os gastos – paliativo adotado por vários assentados, muitos dos quais se estruturaram basicamente com verbas do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) –, mas o manejo no período de produção é invariavelmente trabalhoso e caro: depois da florada, é preciso uma primeira varredura do parreiral para ralear os cachos de forma a permitir uma produção uniforme e de qualidade. Uma segunda varredura é feita quando a uva está amadurecendo, e, com muito cuidado, examina-se cacho a cacho e retiram-se os frutos danificados, para que os demais não sejam contaminados e perdidos. Depois da colheita, segue-se a poda do parreiral, e uma espera de 60 dias para que as plantas reiniciem o ciclo produtivo.
“Aqui todo mundo é apaixonado pela uva, mas nosso maior problema é achar e pagar a mão-de-obra necessária. Uma diária está saindo por volta de RS 27, e tem mulher ganhando até 80 reais por dia para ralear uva. É caro demais ter que contratar; nessa atividade não dá pra ter funcionário”, explica Francisco, que, no entanto, já paga cinco ajudantes.
A capacidade do assentamento de ser praticamente autossuficiente no que tange a mão-de-obra – quando as próprias famílias não dão conta do trabalho, a ajuda vem dos vizinhos – lhe confere uma vantagem considerável sobre os grandes projetos de fruticultura irrigada da região, explica o coordenador regional de produção do MST, Edinaldo Ramalho Leite, o Neguinho. “Tem duas coisas que temos que levar em conta: o pequeno produtor tem que diversificar as culturas para garantir uma renda estável. E não pode exagerar na área de uva. Independente da variação do preço da produção, o pequeno se segura. Já os grandes estão quebrando”, afirma Neguinho.
A supremacia dos pequenos
Pano de prato na mão, dona Florisbela Araujo Neves anda atarefada pela confortável cozinha arrumando uma loucinha aqui e ali, ouvidos atentos na conversa do filho Florisvaldo, que, sentado à mesa, conta das origens do assentamento. Um “e pra senhora, como foi?” direcionado a ela basta para que jogue o pano sobre os ombros, se sente junto e fale de como realizou seu maior sonho: ser proprietária de um pequeno lote na beira do São Francisco e nunca, nunca mais trabalhar pros outros.
A família de Florisbela acompanhou todo o processo de criação de São José do Vale. Ocupou a terra, acampou debaixo de lona, aderiu com fervor e amor ao MST – Florisvaldo que, em 1996, aos 14 anos, foi um dos primeiros alfabetizadores da criançada do acampamento, hoje é dirigente estadual do movimento -, e atualmente cultiva 6,5 hectares de frutas, arroz e feijão irrigados. Mas também aqui a grande paixão é a uva de mesa.
A história de Florisbela e sua família é, em muitos aspectos, idêntica à de tantos outros sertanejos: originários de Casa Nova, na Bahia, ela e o marido atravessavam o São Francisco para os lados de Pernambuco sempre que havia safra, para defender a sobrevivência da família como diaristas. Trabalhavam no projeto de Bebedouro “onde o patrão era muito coronel e trabalhador não tinha direito”, até que um dia vieram de vez, em busca de vida melhor e escola para os filhos. Acabaram nas terras de uma viúva que cultivava uva, e é aqui que o causo se torna interessantemente emblemático.
A viúva tinha vários filhos, conta Florisbela, que nunca trabalhavam. Toda a lida no campo ficava nas costas dela, do marido e dos meninos, e o pagamento não era nada bom. Foi quando o MST chamou, eles foram, e deixaram pra trás os dias de patrão. Tempos depois, chegou a notícia de que a viúva havia falido. O mesmo acabou acontecendo com o patrão de Bebedouro. E há não muito tempo, a filha da viúva, que nunca havia trabalhado, veio colher uva no assentamento.
Dona Florisbela, que, com os quatro filhos, chega a tirar três salários mínimos/mês por família só com a uva, não relembra a história como quem conta vantagem. Tem ajudado a viúva e seus filhos quando há precisão. No rosto curtido, onde os olhos e o sorriso iluminam o arredor de alegria e gentileza infinita, não transparece pena do passado. Florisbela tem é orgulho do presente, e uma certeza: do jeito que as coisas andam, os grandes vão se estrepar. Futuro mesmo, na fruticultura irrigada, só para a agricultura familiar.
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Por outro lado, a organicidade dos assentamentos também confere aos assentados uma vantagem sobre a agricultura familiar convencional na região. De acordo com Nildo Martins, coordenador estadual do setor de produção do MST, não há estatísticas comparativas sobre a renda de uma família assentada e de uma não assentada, mas a diferença é considerável, tendo em vista o custo de produção, as dificuldades no acesso ao créditos, a descontinuidade tanto da liberação dos recursos (quando se consegue liberar) quanto no acompanhamento técnico, e a falta de equipamentos para irrigação. Assim, o que para uma família individual são problemas de difícil solução, nos assentamentos muitas vezes é encaminhado em negociações coletivas, fortalecidas pela intervenção do MST.
Nesse sentido, avalia Nildo, apesar da inexistência de dados organizados sobre a média dos vencimentos de uma família assentada, é possível afirmar que as condições de vida são superiores às da média regional. “A criação de pequenos animais e a produção de hortaliças, grãos e frutíferas tanto nas áreas de produção quanto no entorno das casas, garantem parte dos alimentos que vão diretamente à mesa do assentado. Com a comercialização da produção excedentes das parcelas, em boa parte dos assentamentos calcula-se – a partir de relatos dos assentados – uma renda de aproximados de 1,5 a 2,0 salários mínimos/mês”.
A água faz milagre; quando tem
No final da década de 1990, o economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Jorge Luiz Mariano da Silva, estudando os modelos de irrigação adotados por pequenos produtores na região do Vale do São Francisco, descreveu o sistema como tendo promovido “uma nova dinâmica na região semiárida, principalmente no que se refere à inserção de famílias de baixa renda na produção de frutas. Os projetos de irrigação permitiram a transformação da agricultura familiar tradicional- voltada para a produção de subsistência - em uma agricultura diversificada e dinâmica, direcionada para a produção comercial”.
De fato, desde 1995, quando promoveu a primeira ocupação de uma área falida no chamado perímetro da uva e fruticultura (região entre os municípios de Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista), o MST tem buscado interferir na estrutura socioeconômica da região priorizando: a) o aumento da população produtiva e b) a universalização da infraestrutura de irrigação para os pequenos agricultores.
No tocante ao primeiro ponto, o movimento foi exitoso: promoveu o assentamento de cerca de 2,8 mil famílias em 32 áreas ao longo do São Francisco. Já quanto à instalação, consolidação ou expansão da infraestrutura de irrigação nos assentamentos, o principal problema é a lentidão e a burocracia dos órgãos federais (Incra e Codevasf), afirma o MST. Diante disto, o movimento passou a investir pesadamente em negociações com o governo estadual de Eduardo Campos (PSB).
Em reunião realizada no início de novembro entre representantes dos 18 assentamentos da BR-428 (que liga Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista), dirigentes do MST e da Secretaria de Agricultura do Estado no assentamento Vitória – que, com 16 anos e 260 famílias, ainda não tem abastecimento de água para consumo humano –, os agricultores pontuaram os principais entraves ao desenvolvimento de boa parte dos assentamentos da região.
No caso do Vitória, que ocupou a área de um projeto (falido) de 260 hectares de acerola, coco, manga e goiaba, a antiga estrutura de irrigação por pivô central era tão dispendiosa em energia que os mesmos custos que causaram a falência da fazenda mergulharam os assentados em uma dívida que levou ao corte da eletricidade por anos e só foi quitada em 2012. Agora, o assentamento quer celeridade na revitalização dos 2 km da adutora já existente e um novo modelo de irrigação, mais econômico e viável. “Temos um projeto com a Codevasf, mas faz dois anos que estamos esperando a implementação. Temos 300 hectares de terra pronta, limpa e preparada para o plantio, e só estamos esperando a água chegar”, explica uma das lideranças do assentamento.
Acostumado a se mover com desenvoltura no tabuleiro político-partidário nacional, o MST é estratégico ao privilegiar o governo de Eduardo Campos, presidente do PSB – cujos bons resultados nas últimas eleições municipais fortaleceram o partido e suas chances no pleito de 2014 – como principal interlocutor em Pernambuco. Na reunião de novembro, o dirigente nacional do movimento Jaime Amorim foi direto ao ponto: assentamentos e assentados são um enorme potencial do ponto de vista político – nas eleições municipais houve apoio do MST a vários candidatos do PSB na região –, mas é preciso investimento na melhoria da capacidade produtiva e da qualidade de vida dos agricultores. A resposta às demandas não foi menos direta: vamos fazer; e o que extrapolar as possibilidades orçamentárias do Estado será cobrado politicamente da Codevasf.
Política à parte, para entender melhor o projeto socioeconômico do MST, pode-se tomar como exemplo o caso do assentamento Safra. Atualmente com 220 famílias, o Safra foi fruto da primeira ocupação do movimento no sudeste pernambucano em 1995, que reuniu cerca de 2,5 mil pessoas. Enquanto as famílias excedentes, que não puderam permanecer na área, foram conquistando novas terras (na sequencia do Safra, surgiram nove novos assentamentos do MST na região), as que permaneceram receberam cada uma 10 hectares. Destes, apenas 1,1 hectare por família é irrigado.
Diferente de São José do Vale, onde grande parte dos assentados já trabalhava em projetos de produção de uva (o que acabou consolidando a cultura como principal atividade do assentamento), o Safra é formado majoritariamente por ex-meeiros, explica o assentado José Felizberto.
Nascido em Pena Forte, no Ceará, seu José é uma das lideranças mais antigas do Safra. Como tantos outros, ele fugiu da grande seca que se abateu sobre a terra natal entre 1975 e 1977, e em Pernambuco foi tocando a vida como pequeno arrendatário em fazendas alheias. “Um dia apareceu pras nossas bandas o Levi [um dos primeiros dirigentes do MST no Estado], falando de coisas como conquistar um pedaço de terra e vida digna. Gostei. Marcamos o dia da ocupação, mas quando chegamos na fazenda a polícia já estava esperando na cancela. Aí o Levi cortou a cerca e fomos todos pra beira do rio”, conta o assentado. Para evitar o despejo, os sem-terra permaneceram acampados às margens do São Francisco – área de Marinha pertencente à União e, portanto, imune ao pedido de reintegração de posse por parte do fazendeiro – por um ano, até a desapropriação e destinação para fins de reforma agrária das terras.
Anfitrião zeloso (e orgulhoso), seu José oferece uma visita guiada à parte irrigada do assentamento, cerca de 300 hectares com cultivo predominante de goiaba, manga, mamão, melancia e culturas de subsistência, como feijão, milho e macaxeira.
O Safra é verdadeiramente bonito. Deixando-se a agrovila com suas ruas arborizadas, casas bem cuidadas e quintais floridos, passa-se imediatamente às áreas de roça. Aqui, a lógica do sertão-miséria foi revirada do avesso. Contrariando as estatísticas que apontam perda total da produção de grãos no Estado por conta da estiagem, os milharais crescem vigorosos. Ladeada de coqueiros carregados, a roça de macaxeira consorciada com mangueiras recém plantadas irradia verdes de todas as tonalidades. Até mesmo os pequenos trechos de vegetação nativa são suáveis e gentis, oferecendo sombra em lugar da dureza ressequida que caracteriza a Caatinga nesta época do ano. E é em um desses “bosques” que seu José surpreende um grupo festivo em almoço familiar (porque era sábado), e apresenta Gilmar Lucas da Silva, dono do lote.
Conhecido entre os amigos como Amado Batista, Gilmar é considerado um conversador de primeira. Baiano de Belém de São Francisco, perdeu a mãe cedo e, aos 16 anos, assumiu a criação de seis irmãos. Foi trabalhar de meeiro em Itaparica, mas a construção de uma hidrelétrica inundou a fazenda do patrão e acabou com seu ganha-pão. Assim como muitos outros, não recebeu indenização alguma e seguiu na vida sem quase nada além de uma capacidade monumental de trabalhar.
Aos 23 anos, Gilmar se casou. Ainda cuidava de dois irmãos, mas logo vieram seus próprios filhos, cinco no total. “Quando surgiu a oportunidade de conseguir uma terrinha no assentamento, pensei: passar necessidade no que é seu é melhor do que bucho cheio na terra dos outros. E vim”.
Caminhando pelas plantações de goiaba e mamão irrigados, sua principal fonte de renda, o baiano conta das desventuras e venturas que lhe aconteceram depois que fincou pé no Safra. Pegar o jeito do cultivo irrigado deu um pouco de trabalho e muitas despesas – foram R$ 6,5 mil de gastos só com canos, e no início a conta da energia chegava a R$ 240/mês (hoje é de R$ 70) -, mas a vida mudou muito. “Hoje tenho casa com água e luz, antes era barraco de taipa e candeeiro”, ri. Mas a maior felicidade, confidencia, é ter dois filhos formados como técnicos agrícolas e um, o mais velho, estudante de medicina em Cuba.
“Filho médico é merecimento que a gente tem”, explica. Mas tem que cuidar: “Comprei um computador pra ele e todo mês tento mandar um dinheirinho, porque sabe como é: médico tem que estudar demais, o menino mora em um alojamento coletivo, mas precisa comprar suas coisinhas. Então não tem jeito, às vezes fico devendo na loja. Mas nunca por muito tempo”.
Pelos cálculos do presidente da associação dos assentados do Safra, Samuel Ferreira Barbalho, a renda média das famílias gira em torno de R$ 800/mês. “Aqui ninguém precisa de cesta básica, e apenas seis famílias ainda dependem de ajuda do governo para sobreviver. É verdade que 60% recebem bolsa-família, mas é apenas para ajudar na permanência das crianças na escola”, explica. Prioridade máxima, o projeto de educação no Safra inclui uma escola para todas as crianças até a 8ª série, além de duas turmas do projeto Saberes da Terra (espécie de supletivo de 5ª a 8ª séries, com ensino voltado à realidade dos agricultores familiares) para jovens entre 18 e 25 anos.Além disso, todos os educadores do assentamento estão cursando pós-graduação em educação no campo.
A maior preocupação do Safra, no entanto, é estender a estrutura de irrigação para os 1.100 hectares restantes do assentamento, cultivados parcialmente apenas na época das chuvas. Uma adutora para levar água a 400 hectares já existe há cerca de cinco anos, mas nunca chegou a funcionar, e agora está avariada. Aproveitando a reunião com o secretario de Agricultura do Estado naquele mesmo dia, Samuel apresentou a demanda por verbas para ativação da adutora, mas ponderou que, simultaneamente, existe a necessidade de instalação de um sistema de drenagem, devido à ameaça de salinização das áreas irrigadas (ver box). Arrancou do governo a promessa de uma visita à área na semana seguinte.
Ver o verde “tomar de conta” também a área de sequeiro do Safra é o sonho de muita gente. João Leite, outro veterano do assentamento, lembra com saudade dos primórdios, mas se diz preparado para as pelejas do presente. “A nossa foi a melhor luta do Vale do São Francisco. O Safra foi onde tudo começou, tem o melhor solo de todos. Mas agora queremos mais, temos mais de mil hectares pra irrigar, e vamos à luta”. Já Samuel sonha alto. “Quando começar a funcionar este novo sistema de irrigação, calculamos que a renda mensal familiar saltará para cerca de R$ 2 mil. E mais: com apenas 400 hectares irrigados adicionais, podemos gerar cerca de mil empregos. Na época da colheita, esta demanda dobra. Aqui vai ter trabalho e renda suficiente para todos”.
Salinização: a morte que vem da água
A salinização dos solos é um problema recorrente nas áreas irrigadas do semiárido, e pode inutilizar definitivamente grandes parcelas de terra. Ocorre geralmente em regiões com pouca chuva e onde o lençol freático salino está próximo à superfície, e já levou à perda de seis lotes no assentamento Safra.
Quando os sistemas de irrigação depositam no solo uma quantidade excessiva de água, há um aumento no processo de evaporação, que carrega para a superfície o sal depositado no subsolo. De acordo com coordenador estadual do setor de produção do MST, Nildo Martins, a salinização afeta a germinação e a massa volumar das culturas, bem como seu desenvolvimento vegetativo, reduzindo a produtividade e, nos casos mais graves, levando à morte generalizada das plantas.
“Há grandes possibilidades dos solos das regiões áridas, submetidos à prática da irrigação, se tornarem salinos, principalmente quando não possuem um sistema de drenagem adequado. De 20% a 30% das áreas irrigadas necessitam de drenagem para manter sua produtividade, sendo a irrigação e a drenagem ações afim. Estimativas da FAO informam que dos 250 milhões de hectares irrigados no mundo, aproximadamente 50% já apresentam problemas de salinização. E 10 milhões de hectares são abandonados, anualmente, em virtude desses problemas”, diz Nildo.
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Galeria de fotos (clique nas imagens para ampliar):
*A jornalista viajou a convite do MST
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