19/04/2013 4:26 pm
“Eles só existem porque resistiram”
Releia matéria da Fórum 117: para Kenarik
Boujikian, morosidade do Judiciário contribui para conflitos em terras
indígenas, mas o Executivo tem responsabilidade quando relega a
demarcação a um segundo plano
Por Glauco Faria
“A
violência enquanto um dado social não favorece ninguém, mas na questão
da terra não favorece os indígenas, pelo contrário, favorece os que
estão na posse da terra.” E essa violência é favorecida pela omissão e
lentidão do Estado, em seus três Poderes. Kenarik Boujikian,
desembargadora no Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da
Associação Juízes para a Democracia (AJD), tem uma atuação notável na
área dos direitos humanos e, hoje, também está engajada na defesa dos
direitos indígenas, uma questão que permaneceu invisibilizada por muito
tempo no Brasil.
Na
entrevista a seguir, ela fala sobre os conflitos de terra, a atuação do
Estado na questão indígena e o histórico que levou a essa situação.
Fórum
– Como a lentidão dos processos judiciais, em todas as instâncias,
colabora para que as áreas indígenas sejam mais conflituosas ?
Kenarik
– Essa demanda tem sido uma constante na questão dos povos indígenas,
mas especificamente na demarcação das terras indígenas. Cada vez que uma
questão não é solucionada, ela tem a tendência a gerar mais violência,
mais tensão naquela localidade, tanto para uma parte quanto para a
outra. Isso vai se tornando uma bola de neve, e não se sai daquilo. Mas
perdem especialmente aqueles que são a ponta fraca da história, que, no
caso, são os povos indígenas. Nunca é a outra parte que sai perdendo,
embora a tensão seja um fator social que acaba repercutindo em toda
aquela comunidade. Acho que o Judiciário fomenta essa situação.
A partir
do momento em que se toma uma decisão, de uma forma ou outra, há uma
solução para aquela situação, e é essa a expectativa especialmente dos
indígenas; não sei se do outro lado a expectativa é a mesma porque essa
situação os favorece, já que eles continuam na terra. Veja o caso dos
Pataxós na Bahia, eles estavam lá aguardando uma decisão havia três
décadas. A quem favorecia aquela situação? Não era a eles evidentemente…
A violência como um dado social não favorece ninguém, mas na questão da
terra não favorece os indígenas, pelo contrário, favorece os que estão
na posse da terra. Legalmente ou ilegalmente.
A lentidão
é grande. Existe uma parte dessa responsabilidade sobre as demarcações
que não é do Judiciário, é do Executivo, ainda mais se levarmos em
consideração que a Constituição de 1988 determinava que as demarcações
fossem feitas no prazo de cinco anos. Há vários processos no STF [Supremo Tribunal Federal],
mas existem os que estão em outras instâncias do Judiciário, nos
tribunais superiores e na primeira instância. Enfim, acho que a
responsabilidade é compartilhada, infelizmente.
Fórum – E
em relação especificamente ao STF, é uma demanda inclusive da
Associação dos Juízes para a Democracia (AJD) que se dê prioridade aos
processos que estão no Supremo. Dá para ter uma ideia de quantos
processos estão parados ali?
Kenarik – Não sei o número exato, inclusive a Associação vai entrar com um pedido no CNJ [Conselho Nacional de Justiça]
e outro no STF. Para o CNJ, vamos pedir, ainda em dezembro, um
levantamento de todos os processos do Brasil referentes à demarcação, e
saber quando foram protocolados, para termos uma noção melhor, já que
temos um problema muito sério no Mato Grosso, evidentemente uma situação
muito peculiar, mas temos problemas também em outros estados. E vamos
pedir esse levantamento diretamente para o STF.
É possível
dar prioridade? É possível. Recentemente, o CNJ deu um tom de
prioridade, por exemplo, à questão da Lei de Imprensa. Um dos últimos
atos do ministro Ayres Brito, na condição de presidente do CNJ, foi
esse, criar um banco de dados etc. e tal, específico da Lei de Imprensa.
Por que não é possível fazer o mesmo para a questão indígena,
especialmente quando temos uma determinação constitucional que
estipulava a resolução em um prazo de cinco anos? Acho que razões não
faltam, e seria uma obrigação pela Constituição que o Judiciário fizesse
isso em todos os processos.
O Pacto de São José da Costa Rica, uma norma regional estabelecida no âmbito da OEA [Organização dos Estados Americanos],
do qual o Brasil é signatário e que virou lei aqui, diz que os
processos têm de ter solução dentro de um prazo razoável. Não diz
exatamente qual é este prazo razoável, isso é determinado de acordo com o
processo, com o número de partes, enfim, por uma série de fatores. Mas
existe essa norma. A Constituição, após a emenda da reforma do
Judiciário, emenda 45, também acolheu e colocou esse ponto no texto
constitucional. O artigo 5º, no qual estão elencados os direitos
fundamentais, estabelece que as pessoas têm direito ao prazo razoável.
Se você conjugar essas duas normas – a que está na própria Constituição,
que é o prazo de cinco anos para a demarcação, mais a leitura do prazo
razoável –, é claro que isso vai dar uma norma de prioridade, razão pela
qual diversas entidades, como o Cimi [Conselho Indigenista Missionário],
estão pleiteando isso. A campanha “Eu apoio a causa indígena” está
sendo coordenada pela AJD e pelo Cimi, mas tem diversas entidades que
são dos povos indígenas, de várias localizações, e outras como a
Associação Nacional dos Procuradores da República e a Rede Social de
Justiça e Direitos Humanos.
Acho que
nessa leitura que a gente faz dos primeiros a assinarem, temos pessoas
altamente comprometidas com a democracia no Brasil. A Constituição de
1988 tem esse marco, de pretender que o Brasil seja uma democracia.
Enquanto aquilo não estiver construído, tudo o que tem lá em relação aos
povos indígenas inclusive, não vamos poder afirmar que o Brasil vive
uma democracia.
Fórum –
Com relação à responsabilidade do Executivo quanto à demarcação das
terras nesse prazo de cinco anos, porque a senhora acha que não isso não
se cumpriu desde então? O que deu errado?
Kenarik
– Deu o que dá errado no Brasil de uma forma geral. Existe uma força
econômica muito forte e, no caso, estamos falando de terras, e não
importa a quantidade das terras, qualquer pedacinho de chão neste país é
uma luta terrível, porque para muita gente terra significa poder.
Embora essa não seja a leitura dos povos indígenas, para os não
indígenas acaba prevalecendo a questão de poder, e do poder econômico,
trata-se de um poder econômico forte que está atrás dessa história toda.
E eles são fortes no Brasil, o suficiente para até hoje a gente não ter
resolvido isso. Na minha concepção, o que está atrás do atraso é
basicamente isso. E a falta de visibilidade do desrespeito aos direitos
dos povos indígenas.
Essa falta
de visibilidade é uma coisa muito forte, acho que eles só estão vivos
por conta deles mesmos, porque senão já teriam sido exterminados. Se
lembrarmos que na festa dos 500 anos, 12 anos atrás, eles [os indígenas]
não puderam participar de algumas festividades… Teve até repressão
violenta na Bahia, e saiu uma decisão condenando o Estado por essa
postura. Mas 500 anos depois, eles ainda estão apanhando. Eles só
existem porque resistiram. Raramente saem na imprensa, raramente sai
alguma coisa sobre o que acontece e, quando sai, sai com manipulação.
Acho que tem essa dupla face: a falta de visibilidade e, quando existe
alguma anotação sobre alguma coisa, a imprensa trata de forma muito
desrespeitosa, sem entender qual o projeto do país, de construir um
mundo com alteridade, um Brasil com alteridade, respeitando as outras
culturas. Basicamente é esse o interesse do capital, que não está
distante da questão da imprensa tradicional.
Fórum – Inclusive teve um artigo do Luiz Felipe Pondé, que foi algo constrangedor…
Kenarik
– É, aquilo lá foi uma coisa tão absurda que não dá nem para comentar. E
você vê que saiu na grande imprensa. Quando digo “grande imprensa”
quero falar de um jornal de grande circulação.
Fórum –
Existe uma visão estereotipada do índio, enquanto ele reproduzir a
imagem do “bom selvagem”, tudo bem, mas se começa a usar um computador,
por exemplo, então deixou de ser índio…
Kenarik
– O preconceito está em toda a sociedade. A gente não aprende, no
ensino formal, a ter uma visão de alteridade. Há uma educação precária,
que não lida com a cultura diversificada, e a imprensa joga dessa forma
terrível para atender a alguns interesses, ou por ignorância. Mas,
quando começam a enxergar as coisas que acontecem lá, as pessoas se
sensibilizam e olham com outros olhos. Mas, reafirmo, a resistência, a
gente deve a eles, é algo exclusivo deles.
Agora, a
cultura indígena não é uma coisa estanque, aliás, não existe isso em
nenhuma cultura, nenhuma. Nós, “não índios”, também temos nossas
alterações de vida, de ritmo. Fui de um tempo e meus filhos já são de
outro, e eu acabei me modificando. Isso faz parte de todas as culturas e
povos. Não é um telefone ou um computador que os faz menos povos
indígenas. Não é isso que os caracteriza. Eu não tinha um telefone até
um tempo atrás, e não era por isso que não éramos brancos, ou não
índios.
Fórum – E a senhora esteve no Mato Grosso do Sul em maio…
Kenarik – Estive duas vezes, em fevereiro e maio.
Fórum – Que tipo de impressão a senhora teve, como foi o contato, que tipo de ideia a senhora remodelou com essas visitas?
Kenarik
– O que mais me assustou foi a miséria, isso me deixou muito assustada e
impactada. É muito triste. E me ajudou melhor a entender a relação que
eles têm com a terra.
O que
aconteceu foi o seguinte: ouvi uma vez, no ano passado, aqui em São
Paulo, um depoimento de um indígena que falou que queria ser tratado
como ser humano. Aquilo me deixou acabada. Depois, ainda no ano passado,
aconteceu um evento aqui em São Paulo, o lançamento do comitê de apoio
aos povos indígenas Guarani-Kaiowá. Fui na Câmara Municipal,
representando a AJD, e lá falaram três indígenas: uma mulher, que era a
Leia; o Oriel, que é professor, e o cacique Faride Mariano de Lima. E a
Leia falou isso, de novo, e com muita emoção: “Nós só queremos ser
tratados como seres humanos e indígenas”, e isso me deixou profundamente
abalada.
O cacique,
quando tomou a palavra, falou do Judiciário, dizendo que ele não
respeitava os direitos indígenas, que demorava a julgar… E depois as
pessoas que estavam lá para apoiar a comissão se identificaram. Então,
estava eu e mais uma juíza, a Dora Martins, e falamos quem éramos e ele
falou: “Eu não sabia, me desculpe”, e dissemos: “Não, você está coberto
de razão, a gente entende e concorda com o que o senhor falou.” E ele
falou: “Vocês têm de conhecer lá, nos visitar.” Tenho uma grande amiga
da época da faculdade, que é a Michael Mary Nolan, advogada do Cimi, que
lida com isso há muito tempo, e disse que estava me faltando viver um
pouco disso, e ela falou que me avisaria da próxima vez que fosse para
lá.
Fui, e
nesse período aconteceu uma Aty Guasu, a grande assembleia deles. E é
interessante porque a Aty Guasu começou depois da ditadura militar,
quando alguns índios estavam desaparecendo, e eles resolveram se reunir e
continuaram com essa prática que é muito interessante, a forma de
decidir coletivamente. E, para mim, foi muito impactante entender como
eles lidam com a questão da terra. Conheci a história da dona Damiana,
uma liderança que vive em um acampamento de beira de estrada, uma coisa
horrível e que gera muito estresse, uma precariedade absoluta,
inimaginável mesmo. E ela contou uma história que de forma muito simples
representa o que é a terra para eles.
Pediu para
entrar na terra do fazendeiro só para pegar água, e ele não queria
deixar. Ela foi lá explicar a situação para o fazendeiro e disse: “Olha,
eu só quero água daqui. Eu não quero suas terras, elas não são minhas,
as minhas estão do lado de lá.” Para o indígena, não é qualquer terra, a
terra tem outro tipo de valor. Levou a gente na terra onde mora e
mostrou onde o filho dela estava enterrado. Esse é o sentido, não é
qualquer terra. É uma luta diferente, por exemplo, da luta do MST. A
terra para o MST é outra terra, para eles não, tem uma questão de
espírito, tradição, outros valores envolvidos. Ela não quer aquela terra
do fazendeiro, que pode ser maravilhosa, ter isso e aquilo, mas ela não
quer aquela. A dela pode ser menor, mas isso é indiferente, o que vale
são as terras ancestrais, há toda uma relação de espiritualidade que nós
não conseguimos captar. Entendi melhor quando vi.
Depois, em
maio, fomos em uma comissão de juízes, porque quando voltei levei esse
relato para a AJD e achamos que seria muito bom levar uma comissão. E
nessa época estava tendo uma Aty Guasu, só que de mulheres, que foi a
segunda da história deles com o foco nas questões de gênero. É sempre
muito rico você ter essa oportunidade, ver como eles discutem, como
lidam com as questões, existe todo um funcionamento muito interessante
com que nós não estamos acostumados.
Fórum – Falta um pouco disso para os magistrados, conhecer in loco as questões relacionadas aos casos que julgam?
Kenarik
– Acho que sempre enriquece você conhecer melhor o que você está
lidando. Teoricamente, existem as soluções nas leis, a Constituição fala
e tal. Agora, traz um enriquecimento pessoal gigantesco. Não é
estritamente necessário conhecer para julgar com justiça. Acho que você
pode decidir com justiça sem ir ao lugar, há dentro do processo os
instrumentos que a lei determina. Por exemplo, a Constituição fala das
terras tradicionais, então é algo que já está estabelecido. Depois, você
vai receber dentro do seu processo o trabalho dos antropólogos etc. Não
vai definir nada eu ir até lá, não sei dizer se essa ou aquela é uma
terra tradicional, tem de existir um estudo próprio por quem tem
competência para isso e tem de se fornecer esses elementos para o juiz.
Não
preciso sentir fome para saber que existe fome, tenho de reconhecer que
existe fome. Quando a Constituição fala da erradicação da pobreza, não
preciso ser pobre para saber que isso é um objetivo e que tenho
obrigação, como juíza, nas minhas decisões, de pensar que isso é um
objetivo da República Federativa do Brasil. Talvez falte ao juiz
entender que o país assumiu que temos a cultura dos povos indígenas e
temos compromissos com esses povos. Isso tem de ser reconhecido.
Agora, é
claro, a vivência enriquece o juiz como ser humano. Você ganha como
pessoa, e eu ganhei quando fui lá. Não tem a ver especificamente com o
julgamento do processo. Por exemplo, se um povo não foi ouvido como
determina uma resolução internacional da ONU, que diz como os povos têm
de ser ouvidos, com consulta prévia, não preciso ir lá para ver; mas se
vem o processo, eu quero saber como foi feita essa consulta prévia, se
foi feita de acordo com os ditames estabelecidos pela ONU ou não. É
sempre bom olhar e ver, mas não é especificamente a função do juiz. O
juiz tem de saber quais lados da história que estão em jogo e saber o
que pretendemos como povo brasileiro, que é o que está na Constituição.
Fórum –
Existem alguns juristas que dizem, em relação ao ordenamento jurídico,
que o ideal para os indígenas seria a propriedade coletiva das terras,
em vez do usufruto. A senhora acha isso uma questão fundamental, a
propriedade coletiva traria mais segurança jurídica ou não faria tanta
diferença dado o contexto brasileiro?
Kenarik
– Não sei. Precisamos passar pelo patamar de resolver as demarcações.
Isso eu acho fundamental. Não sei se faria alguma diferença em termos de
perspectivas mais imediatas em relação ao Brasil.
Fórum – Se a maioria das terras nem está demarcada…
Kenarik
– Os povos indígenas estão confinados. Mesmo no Mato Grosso, você vê
que alguns estão em lugares que não têm nada a ver com o local de uma
aldeia. Foram obrigados a ficar lá, uma total violação a tudo que se
pode imaginar. Tem muita coisa a que não se dá visibilidade nenhuma.
Acho que a Comissão Nacional da Verdade também terá um papel importante.
A AJD reivindicou que a Comissão apurasse o que aconteceu com os povos
indígenas na época, existem notícias de que povos foram dizimados para
abrir estradas. Vai ser importante trazer isso à tona, resgatar o que
aconteceu com esses povos dizimados. Não foi só a AJD, a Comissão
Brasileira de Justiça e Paz também estava presente. A reivindicação foi
acolhida, a comissionada Maria Rita Khel ficou na relatoria deste tema.
Isso é um
avanço, porque ninguém fala nada sobre isso. Quando se fala de ditadura,
ouve-se alguma coisa dos indígenas? Eu nunca tinha pensado antes na
questão indígena durante a ditadura, especialmente em áreas pelas quais
passaram estradas. O Ministério Público de Mato Grosso do Sul está
fazendo um levantamento, o Cimi também. É uma coisa que pouco sai na
mídia.
Fórum – E houve uma política deliberada de integracionismo, que na verdade era de aculturação, de assimilação…
Kenarik – Não
só no Brasil, isso foi meio generalizado. Tanto é que a convenção da
Organização Internacional do Trabalho que tratava da questão, anterior à
169, tinha uma visão integracionista. Depois houve uma mudança e a 169
rompeu essa visão do integracionismo. Era um problema dos povos
indígenas da América Latina inteira. A visão paternalista, do bom
selvagem, isso em alguma medida teve a ver com esse movimento, e depois
houve um rompimento dessa visão integracionista. Nossa Constituição
rompeu com isso, foi uma conquista dos povos indígenas que foram lá e
lutaram. Eles são os protagonistas dessa história.
Fórum –
Em relação especificamente a um dos pontos da campanha, que é a PEC 215
[Proposta de Emenda Constitucional promovida pela bancada ruralista que
propõe a transferência da demarcação e homologação de terras indígenas,
quilombolas e áreas de conservação ambiental do Poder Executivo para o
Congresso Nacional], como isso afeta a questão indígena?
Kenarik
– Na verdade, o que existe especificamente nessa PEC é que ela passa as
tarefas do Executivo para o Legislativo. A gente sabe o que está atrás
dessa proposta é não fazer mais nada mesmo, já não se faz nada. Existe
uma bancada forte que defende que nada seja feito, a do agronegócio, uma
bancada forte. A ideia que está por trás é essa. Sair do Executivo, que
já não faz quase nada, e passar para o Legislativo, para aí sim não
fazer absolutamente nada.
Mas por
que isso não é possível? A partir do momento em que existe uma divisão
dentro da Constituição sobre o que cada Poder faz, não se pode alterar, a
lei não permite, existe o princípio da harmonia dos Poderes, e os
Poderes existem justamente para isso. Isso é coisa que não se muda.
Existem coisas na Constituição que podem ser mudadas e outras que nunca
podem ser alteradas. Se tiver um golpe, aí acaba tudo. A gente chama
isso de cláusulas pétreas, aquelas que não podem ser alteradas. Não pode
ter uma norma, uma lei, que diga que processos tais vão ser julgados
pelo Legislativo, assim como o Legislativo não pode delegar funções para
o Judiciário. Assim como o que foi determinado como função do Executivo
não pode ser alterado. Essas cláusulas imutáveis não podem ser
alteradas.
O que está
por trás é perpetuar de forma significativa essa situação de não
garantir o direito dos povos indígenas. Essa função administrativa de
demarcação tem de ser feita pelo Executivo.
Fórum –
Em relação à questão de direitos humanos, uma pesquisa do Datafolha
mostra que 43% dos paulistanos defendem que um policial que executa
alguém não seja preso. Vendo como as pessoas respondem a situações de
violência, à questão indígena, pode-se concluir que o debate sobre
direitos humanos está interditado no Brasil?
Kenarik
– Não sei se “interditado” é a palavra. Acho que a democracia está em
um processo de construção, embora a gente viva momentos muito tristes.
Ao mesmo tempo, vejo uma juventude que participa, acho que isso é uma
luz diferenciada. Ainda estamos colhendo coisas da época da ditadura, os
resquícios nas nossas instituições do que foi a ditadura. Por exemplo, a
questão da tortura. Não acertamos as contas com o nosso passado e, de
alguma forma, isso acaba refletindo no nosso presente.
Não acho
que está interditado, ainda estamos nessa construção. A Comissão da
Verdade tem esse papel. Existe uma pesquisa feita em vários países que
passaram pela transição de ditaduras para Estados democráticos, e
naqueles que houve acertos de contas o grau de violação dos direitos
humanos é inferior. Essa fase, o Brasil ainda não passou.
Outro lado
que acho fundamental para os direitos humanos sempre é a educação, mas a
educação em geral, não só em direitos humanos. A educação como um valor
da democracia, e perdemos muito no período da ditadura militar e ainda
não temos uma educação de qualidade no país. Temos menos analfabetos,
mas não temos educação de qualidade, você vê o número de livros que o
brasileiro lê. Nessa área de cultura e lazer, quando o povo tem uma boa
oferta, ele participa.
Está faltando muito no Brasil. Essa transição ainda não se completou e a gente sabe que a ditadura destruiu a educação no país.
Fórum –
Sobre o legado da ditadura, existe a questão dos desembargadores que
representaram contra os juízes que se manifestaram em relação ao
Pinheirinho.
Kenarik
– Já teve o julgamento desse caso, e vencemos. Alguém achar que aquela
Lei Orgânica da Magistratura de 1979 pode ser interpretada sem a leitura
da Constituição de 1988… Ela foi feita no apagar das luzes da ditadura.
Um deputado, à época, declarou: “Na verdade, esse projeto tem um
profundo sentido político. É um dos substitutos do AI-5, o governo faz
uma manobra de opinião pública, ela está criando institutos que sejam
tão poderosos e discricionários como o AI-5, para depois este tornar-se
desnecessário e o mesmo grau de autoritarismo possa ser mantido com sua
revogação”. Ou seja, mesmo depois do AI-5, com uma outra Constituição, a
lei continua se mantendo, o autoritarismo continua se mantendo. Eles
querem manter, e você tem de lutar para dizer: “Sim, eu posso assinar um
manifesto em relação ao Pinheirinho”.
Isso foi
uma grande vitória, a melhor coisa que aconteceu foi essa representação.
Hoje, claro que existem aborrecimentos pessoais para as pessoas
envolvidas, mas esse é o preço. Foi uma grande vitória da democracia. O
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por seu órgão especial,
decidiu que os juízes têm liberdade de expressão. É preciso acabar com
essa lei orgânica e fazer uma que esteja de acordo com a Constituição.
Tags: Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), demarcação de terras indígenas, guarani-kaiowá, Kenarik Boujikian, Luiz Felipe Pondé, questão indígena
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