domingo, 24 de março de 2013

A FOME E A VONTADE DE FAZER

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Os dois brasileiros que comandaram o braço da ONU na luta contra a fome no mundo

19.03.2013 | Texto: Olímpio Cruz Neto
Foto: Evandro Teixeira
Foto: Evandro Teixeira
Família de Canudos, sertão da Bahia, em imagem de 1997 do fotógrafo veterano Evandro Teixeira

Seis décadas separam as atuações dos dois únicos brasileiros no comando da FAO, braço da ONU criado em 1945 para combater a fome no mundo. De Josué de Castro, que presidiu o conselho da organização entre 1952 e 1956, a José Graziano, diretor-geral desde 2012, levar comida até as barrigas nas quais ela sempre faltou se mantém como um imenso desafio. A dúvida é: temos mais chance de resolvê-lo?

O mundo ainda tem muita fome. Uma em cada oito pessoas no planeta está desnutrida. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 870 milhões de pessoas não comem o suficiente para serem consideradas saudáveis. Desse total, 75% estão em zonas rurais, a maioria vivendo de agricultura de subsistência. O número é vergonhoso, mas já foi mais alto. Há duas décadas, havia 1 bilhão de famintos na Terra. Há 50 anos, dois em cada três cidadãos do planeta passavam fome.
O paradoxal é que não faltam alimentos para suprir esse contingente. O planeta produz a cada ano 2,5 bilhões de toneladas de cereais, com estoque de 500 milhões de toneladas. Há comida suficiente. O problema é levá-la a quem precisa e acabar com o desperdício: todo ano, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou jogadas no lixo.
A guerra contra a fome é um dos grandes desafios colocados pela ONU aos seus 193 países-
membros. No centro de comando da luta, é um brasileiro que dá as ordens: José Graziano da Silva, que ficou conhecido como o ministro que implantou o programa Fome Zero no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva – e que desde janeiro de 2012 é o diretor-geral da FAO, sigla para Food and Agriculture Organization, braço da ONU para as questões ligadas à alimentação e à agricultura. Não é a primeira vez que um brasileiro lidera a agenda internacional do assunto: em 1952, exatos 60 anos antes da posse de Graziano, um médico pernambucano chamado Josué de Castro chegava à presidência do conselho da mesma FAO – entidade fundada em 1945 com a função de aumentar os níveis de nutrição e qualidade de vida no mundo, além de melhorar a produtividade da agricultura e dar melhores condições às populações rurais.
Omissão política
Diplomata e deputado federal mais tarde perseguido pela ditadura militar (morreria no exílio, em 1973, deprimido por não conseguir voltar ao Brasil), Castro foi pioneiro ao sugerir políticas de segurança alimentar, incentivo à agricultura familiar e criação de restaurantes populares. Seus livros foram traduzidos em 25 idiomas. O mais famoso, Geografia da fome, lançado em 1946, representou uma quebra na “conspiração do silêncio” que existia em torno do assunto, como diz o professor Malaquias Batista Filho, da Universidade Federal de Pernambuco – aluno de Castro e hoje grande especialista em saúde e nutrição. “Ele foi o primeiro pensador de um governo mundial capaz de gerir o problema da fome e da miséria”, destaca.
“Encaro o desafio [de erradicar a fome no mundo nos próximos anos] com bastante otimismo, por mais incrível que possa parecer”
Em outra obra, Homens e caranguejos, recorreu às metáforas do mangue e do homem-
caranguejo, “que vive na lama e da lama”, em seu Recife natal, para denunciar a fome – ideia que, nos anos 90, serviu de inspiração para o movimento Manguebeat, liderado pelo músico Chico Science. Josué de Castro tinha a clara percepção de que a fome não é um problema natural, decorrente da falta de água e condições para plantar, ou um castigo divino. A, fome, para ele, era fruto de omissão política. Graziano acredita na mesma ideia.
Fome Zero
José Graziano da Silva é filho de mãe calabresa e pai paulista – e ilustre: José Gomes da Silva foi fazendeiro de sucesso, agrônomo especialista em reforma agrária, tendo ocupado cargos nos governos paulista e federal, além de ser consultor da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da própria FAO. Nascido por acaso nos Estados Unidos, em Urbana (Illinois) – por conta do mestrado que o pai fazia por lá –, Graziano foi militante da juventude católica de esquerda e se formou agrônomo em 1972 pela Esalq, a Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (USP). Fez doutorado na Unicamp e outras pós na Universidade da Califórnia e no Instituto de Estudos Latino-Americanos da University College London.
Foi José Gomes, o pai, que em 1991 acabou incumbido por Lula de elaborar um programa de segurança alimentar para o Brasil. Mais de dez anos depois, em 2003, com Lula eleito presidente, José Graziano, o filho, virou o ministro do Fome Zero, programa que completa dez anos em outubro e que, apesar de dividir opiniões – os críticos mais ácidos o chamam de “bolsa esmola” – tem êxito reconhecido pela ONU.
FAO/Alessandra Benedetti
Graziano em Guaribas, no Piauí, na época da implantação do Fome Zero
Graziano em Guaribas, no Piauí, na época da implantação do Fome Zero
Na esteira desse êxito (segundo os números oficiais, 24 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema com o programa) Graziano, pai de dois filhos e avô de dois netos, tornou-se diretor da FAO para a América Latina e ganhou a força política que o fez vencer as eleições para a direção-geral da instituição, em junho de 2011, numa disputa acirrada com o ex-chanceler espanhol Miguel Angel Moratinos.
A escolha se deu em meio a um processo de reforma da entidade. Uma das primeiras mudanças foi encurtar o mandato do diretor-
geral de seis para quatro anos e limitar a apenas dois mandatos consecutivos a possibilidade de ficar no posto (o antecessor, o senegalês Jacques Diouf, ocupou o cargo por 18 anos e o deixou sob críticas de ineficiência).
Orçamento baixo
Assim que ganhou a eleição, as notícias não foram as mais animadoras para Graziano: para começar, o orçamento da organização para o biênio 2012-2013 teve reajuste tímido (de apenas 1,4%), o que se deve em grande parte à pressão dos países mais ricos (como os EUA), que, em franca crise econômica, exigem que a FAO faça suas reformas e corte gastos antes de pedir mais dinheiro. Com US$ 1 bilhão para gastar (fora as contribuições voluntárias dos países, que devem somar US$ 1,4 bilhão no período), Graziano não escondeu que esperava mais: “A solidariedade do mundo desenvolvido é crucial”, disse na época. Mas ele concorda que a reforma administrativa é fundamental – e descentralizar é a palavra de ordem. Se ao assumir ele encontrou 80% dos 3 mil funcionários trabalhando em Roma, sua meta é espalhar a entidade por mais lugares, levando ajuda e orientação técnica a quem precisa.
À frente da FAO, Graziano se desdobra como um globe-trotter. Na mesma semana, é capaz de estar em Luanda, capital de Angola, voar para Nova York, nos Estados Unidos, e em seguida dar um pulo em Roma, na Itália, onde está o quartel-general da FAO (e o apartamento onde mora com a mulher, a jornalista Paola Ligasacchi). A agenda se desdobra entre reuniões com chefes de Estado, técnicos e representantes diplomáticos. E, claro, visitas às comunidades mais remotas do planeta.
Em janeiro de 2012, pouco depois de assumir o cargo, Graziano andou por países do Chifre da África, onde a soma de décadas de conflitos políticos e a pior seca em 60 anos causaram fome e morte em 2011. Na Somália, país-símbolo desse desastre, a situação extrema melhorou em 2012, graças a uma melhor colheita e um aumento nas entregas emergenciais de alimentos. A crise, claro, não acabou – como o próprio diretor-geral admitiu publicamente ao voltar da viagem. Mas é inegável que, em lugares como a Somália, um dos países mais pobres e violentos do mundo, atormentado por milícias em guerra, a questão da fome vai muito além dos problemas estritamente relacionados à produção e à distribuição de comida.
Meta ambiciosa
Por tudo isso, soa até utópico o desejo de atender à convocação do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, de não apenas reduzir, mas erradicar a fome global até o ano de 2015. A ideia é que todo ser humano tenha direito a ingerir pelo menos 1.850 calorias diariamente. Sem a cooperação de todas as nações, é improvável que José Graziano consiga atingir a meta em seus quatro anos de mandato. Ainda assim, o diretor-geral gosta de dizer que, se houver vontade, o objetivo não é assim tão despropositado. “O Brasil, por exemplo, conseguiu transformar a região de Petrolina, em pleno semiárido, no estado de Pernambuco, num celeiro de produção de alimentos. Lá, plantam-se frutas e produz-se até vinho. Dá para fazer isso na África.”
De voz calma, Graziano diz não temer a tarefa. “Encaro o desafio com bastante otimismo, por mais incrível que possa parecer”, comenta. Um dos amigos mais próximos, o veterano jornalista Ricardo Kotscho, que trabalhou com ele no governo Lula, diz que esse é um dos traços do professor, que descreve como “um homem simples e modesto, mas que tem sonhos”.
Combater a fome mundial sem o respaldo da comunidade global é tarefa bem mais complicada do que a experiência vivida com o Fome Zero – quando Graziano tinha o apoio do presidente da república e a simpatia de diversos setores da sociedade. Mas a experiência técnica no desenvolvimento de políticas agrícolas é um dos elementos que podem fazer a diferença em sua gestão, como apontou um artigo do jornal britânico Guardian, pouco depois de sua escolha para o comando da FAO: “São agricultores – e não diplomatas – que cultivam alimentos”. Para Graziano, a solução para os problemas de segurança alimentar começa nas aldeias, nas cidades, com iniciativas locais. “Ninguém come em nível global. Você come no restaurante, na cantina, na sua casa É aí que precisamos de respostas.” Exatamente como pregou o pernambucano Josué. Mas agora, espera-se, com mais condições para acertar.

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